Cultivar é preciso
Satélites, conexão digital, internet das coisas, gestão de cultivos e pecuária, equipamentos e tratores autônomos tornaram o cultivar centimetricamente preciso no Brasil
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Navegar é preciso, viver não é preciso. Essa frase não foi inventada por Caetano Veloso na música Os Argonautas. O escritor Plutarco atribuiu esse adágio, no livro Vida de Pompeu, a esse general romano. No século I a.C., durante forte tempestade no Mediterrâneo, o general Pompeu dirigiu o Navigare necesse est, vivere non necesse a seus temerosos marinheiros ante uma arriscada travessia para trazer alimentos da África para Roma sitiada.
Esse ditado foi retomado muitas vezes ao longo da história. Ele foi o lema da Liga Hanseática. Essa aliança de cidades mercantis estabeleceu e manteve um monopólio comercial sobre quase todo o norte da Europa e do Báltico, entre os séculos XIII e XVII. Bem mais tarde, a expressão foi usada como uma convocação ao heroísmo por Gabriele d’Annunzio (1863-1938), poeta e dramaturgo italiano, herói de guerra. Suas ideias socialistas e nacionalistas inspiraram Benito Mussolini. E ele também retomou esse provérbio em um famoso artigo no jornal Popolo d´Italia, em 1920.
A partida de Vasco da Gama para a Índia em 1497. Crédito: Biblioteca Nacional de Portugal.
Um poema de Fernando Pessoa tem esse apotegma como título e exalta os ideais patrióticos, épicos e gloriosos dos lusitanos: Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: “Navegar é preciso; viver não é preciso”. Viver não é necessário; o que é necessário é criar. Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso. Só quero torná-la grande, ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a (minha alma) a lenha desse fogo.
Conceitos
A máxima “Navegar é preciso, viver não é preciso” está associada, de forma pouco conhecida, às descobertas marítimas dos portugueses, exploradores de mares nunca dantes navegados. Com o aperfeiçoamento de bússolas, astrolábios e instrumentos náuticos, de cosmografia, cartografia, matemática e técnicas de navegação (medidas de velocidade), a ciência náutica portuguesa ganhou enorme precisão no século XVI.
José Antonio da Cunha Couto \ Disputa entre cosmógrafos. Crédito: Wikimedia Commons
No Caminho das Índias, os navegantes lusitanos podiam ficar cerca de 90 dias em pleno oceano sem ver terra alguma. Só água. E sabiam para onde se dirigiam e razoavelmente onde estavam. Navegavam com precisão, graças aos instrumentos e às ciências náuticas. Navegar se tornou preciso. E o posto de cosmógrafo-mor, o mais alto cargo da função pública do Reino de Portugal.
O aforismo de Pompeu tomou outro sentido com as navegações ultramarinas portuguesas. Nos regimentos das naus, ele evocava o início da navegação de precisão. De lá para cá, o navegar é preciso. Ainda mais nos dias atuais, com os satélites GPS. Já o viver dos homens nunca foi preciso. E nunca será. Para os cosmógrafos nas caravelas, navegar era preciso. Viver, não: ataques, doenças, naufrágios e fados.
Evolução
Da navegação de precisão à agricultura de precisão foi um longo trajeto. Agora, o mundo digital e suas transformações fazem parte do cotidiano, da produção e dos negócios na agricultura. O mundo rural brasileiro é cada vez mais digital, georreferenciado e conectado. São pelo menos dois universos relacionados: serviços de base digital fora da porteira em apoio ao processo produtivo e aplicações digitais nos sistemas de produção nas fazendas. No apoio à agricultura de precisão estão três tipos de satélites: meteorológicos, de monitoramento e de posicionamento global.
Os satélites meteorológicos revolucionaram o conhecimento do clima e a previsão do tempo. A cada 15 minutos, eles enviam dados sobre nuvens, ventos, umidade atmosférica, chuvas, secas, incêndios etc. Os dados ajudam em plantios, tratamentos fitossanitários, colheita, secagem e transporte. Estações meteorológicas das fazendas são conectadas aos sistemas de previsão. A Embrapa Territorial e a Associação Baiana dos Produtores de Algodão desenvolvem um dos primeiros sistemas de agrometeorologia de precisão e alerta fitossanitário no oeste da Bahia.
Satélite meteorológico. Crédito: Embrapa
Os satélites de monitoramento, em 30 anos, passaram de imagens com detalhes de 30 metros para 30 centímetros. E, de duas imagens por mês, para várias imagens por dia. Empresas privadas exploram dezenas de satélites. Seus dados permitem melhores zoneamentos agrícolas, mapeamentos de solos, de recursos hídricos, infraestrutura, plantios e safras. Eles foram a base do Cadastro Ambiental Rural para cerca de 6 milhões de imóveis rurais. A Embrapa Territorial tratou esses dados. Os agricultores dedicam mais de 280 milhões de hectares à preservação da vegetação nativa (33,2% do Brasil). E cultivam apenas 7,8% do território nacional. Sem dados precisos de satélites imageadores, esses números seriam desconhecidos (Revista Oeste).
Os satélites de posicionamento ou de GPS apoiam o transporte de cargas e suprimentos para a produção agropecuária, a localização de veículos, o trabalho da aviação agrícola e são essenciais na agricultura de precisão e em parte da agricultura 4.0, sobretudo no uso de máquinas e equipamentos. Mapas digitais detalhados da produtividade de cada parcela dos campos são elaborados. Eles servem de base, na sequência, para distribuir adubos em fluxo variável, adequado à produtividade de cada porção dos campos.
Adesão às tecnologias
Há duas ou três décadas, a informática entrou nas fazendas pelos escritórios. Computadores usados na gestão contábil e financeira chegaram à parte técnica e operacional. Agora, a computação está nas máquinas, no campo e nos estábulos. Na produção de mangas em Petrolina, cada árvore tem seu código de barras. E há um chip ou brinco eletrônico em cada animal de tantos rebanhos bovinos espalhados pelo Brasil.
Drones e geotecnologias criaram um novo campo na implantação e na análise das lavouras. Eles detectam pragas e doenças, falhas de plantio, excesso de irrigação, problemas nutricionais, emergência de plantas daninhas, graças a softwares de análise das imagens captadas. Outros drones são utilizados em operações agrícolas: semeaduras, pulverizações de agroquímicos, liberação de agentes de controle biológico, acompanhamento de áreas florestais, monitoramento de rebanhos à distância etc. O custo-benefício dessa ferramenta é excelente e, em parte, substitui até a aviação agrícola.
Trator usando GPS no campo. Crédito: Shutterstock
O Brasil é o principal mercado de drones da América do Sul. O faturamento anual é estimado em US$ 373 milhões. São quase 100 mil drones registrados no Brasil. O mercado cresce cerca de 30% ao ano e no agronegócio gera novas empresas (startups, fornecimento de equipamentos de mapeamento, de aplicação de insumos…), produtos e serviços (softwares para tratar as imagens dos drones, análises de dados e previsões…). O mercado global de drones agrícolas supera US$ 2 bilhões e alcançará US$ 4,8 bilhões em 2024.
Na agricultura digital, satélites, processamento de imagens, conexão digital, internet das coisas, gestão de cultivos e pecuária, equipamentos e tratores autônomos na execução de tarefas tornaram o cultivar centimetricamente preciso no Brasil. Cultivar é preciso. Como nunca havia sido.
A qualificação profissional do homem rural é cada vez mais exigente
Com a precisão aumentam produtividade, rentabilidade e sustentabilidade na agropecuária. Dados de equipamentos e sensores utilizados em fazendas de regiões inteiras, conectados a grandes bancos de dados, aplicativos e dispositivos móveis permitem acompanhar pelo celular desde a agrometeorologia até a mosca dos estábulos, do comportamento alimentar de bovinos a seu efetivo conforto térmico. Com precisão.
A junção de tecnologias digitais embarcadas em máquinas e equipamentos agrícolas, como as de geoprocessamento, GPS e sensores no campo (medir umidade do solo etc.), trouxe uma progressiva automação, com ganhos de precisão na condução da agropecuária. É o tempo da agricultura de precisão, da pecuária de precisão, da agrometeorologia de precisão etc. Até versões de máquinas autônomas, sem tratorista, são testadas.
Rastreabilidade em bovinos. Crédito: Embrapa
Fazendas participam e acessam grande número de informações em redes (BigData). São bancos de dados capazes de responder milhares de perguntas sobre produção animal, vegetal e uso de tecnologias oferecidas por grandes empresas de insumos. É o começo da inteligência artificial na agropecuária. Ela revolucionará as possibilidades da assistência técnica ao homem do campo e da difusão de novas tecnologias, com a necessária melhoria da deficiente conectividade nas áreas rurais.
A qualificação profissional do homem rural é cada vez mais exigente. Antigamente, pais alertavam filhos sobre estudar para ser médico, advogado ou engenheiro. Para não ficar na roça, vivendo da enxada. Hoje é o contrário. Se o filho não estudar agronomia, gestão, economia, informática, mecatrônica e outras, não conseguirá ficar no campo. E terá de buscar um empreguinho na cidade. E lá, o viver não é nada preciso.
Todas essas mudanças tecnológicas trazem rupturas na agricultura. Às novas exigências de consumo, os produtores, apoiados por pesquisa e empresas de insumos e serviços, proverão novos padrões de produção. Como Roma no tempo de Pompeu, o mundo pede por alimentos. E, como seus antepassados portugueses, os agricultores brasileiros sabem: para viver e sobreviver, cultivar é preciso. E com muita precisão. Tecnologia não faltará.
Por Evaristo de Miranda, doutor em Ecologia, chefe-geral da Embrapa Territorial e membro da Academia Nacional de Agricultura da SNA.
Fonte: Revista Oeste
alavoura.com.br 18/02/2022
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